Os sentimentos e a pandemia

Os Sentimentos moram neste mundo, mas em lugar escondido que é só seu. Está determinado pelas arcanas leis do universo que a cada tempo eles deveriam fazer uma visita à terra.

06/07/2020

Brás Lorenzetti, cmf

Os Sentimentos moram neste mundo, mas em lugar escondido que é só seu. Está determinado pelas arcanas leis do universo que a cada tempo eles deveriam fazer uma visita à terra.

O Tédio foi o primeiro a chegar. Fez o reconhecimento do lugar e achou estranho que tudo na terra estava vazio: bosque, ruas e praias desertas. A Indecisão demorou muito porque não conseguia escolher qual caminho para chegar à terra. Viu tudo deserto, mas não conseguiu nenhuma conclusão.

A Desconfiança, com sua costumeira filosofia, aventou: pode ser ou não ser ou então o contrário. Mas a Curiosidade não se ateve a filosofias, foi direta ao ponto: os humanos estão dentro de casa. Com eles está o Medo que não os deixa sair por causa de um tal de Corona. Uma peste muito poderosa e que estava em todos os cantos espreitando para apanhar os incautos. É bem verdade que a Prudência também estava na casa e afirmava proteger os que lá estavam. Porém, a Intriga foi encontrada passeando por praias e avenidas dizendo ser tudo arrumação da oposição. Não só isso, espalhava para todo mundo que nada daquilo estava acontecendo. Todo mudo parece ser filho do medo, afirmava ela.

O Entusiasmo vibrou de alegria, primeiro por saber que a pandemia não era tão violenta assim como todo mundo andava dizendo, depois que um chá poderoso – de boldo do Chile – seria suficiente para matar o vírus infernal, e, em último caso, uma tal de Cloroquina, fatal para o intruso.

A Dúvida e a Apatia sequer conseguiam sair do lugar por excesso de informação e, in dúbio, optaram por tomar uma decisão em hora oportuna. A Verdade entrou na história porque não aguentava tanta divergência que não levava a nada. Ela estranhava que não se enxergasse, pois tudo era tão límpido e claro.

A Arrogância, com cara de desdém, argumentava a necessidade de voltar às atividades e que tudo isso não passaria de uma gripezinha. Já o Medo argumentou: eu não chegaria a tanto. Nunca se sabe a força do inimigo. A Prudência interveio: nesse caso, o melhor que se pode fazer é estudar o ponto fraco desse adversário.

A Preguiça aproveitou o momento de isolamento social para tirar todas as sonecas possíveis. Não tinha hora para levantar e tudo estava bom para ela desde que não faltasse comida. Não é à toa que ia engordando dia a dia.

O Otimismo, no princípio muito aparente, foi se afastando. Mesmo assim, arriscou: pressinto que a luta vai ser árdua, e concluiu enfaticamente: vamos vencer!

A Inveja e a Hipocrisia, que sempre andam juntas, não tiveram receio de afirmar: isto é obra do mal! Os inimigos espalharam o vírus e hoje nós somos vítimas. Temos que destruir o vírus e os inimigos. Nós nada temos com isso.

A Generosidade percebeu que uma imensidão de trabalhadores tinha perdido o trabalho porque fábricas, lojas e todos os postos de trabalho haviam fechado. Como é do seu natural, organizou as forças do bem e fez uma grande campanha em favor dos necessitados. A colaboração foi imensa.

A Culpa ficou paralisada, “escondida em si mesma”, achava que a situação tinha alguma coisa a ver com ela, porém não sabia o que fazer para se ver livre da situação. O Esquecimento, sem saber o que estava acontecendo, andava de um lado para outro ao léu, certo de que em nada poderia colaborar.

A Sensualidade tratou de aproveitar que o povo estava em quarentena para ter um sol e uma praia só para si. Se eu estou bem, por que me preocupar, dizia ela. Não tenho culpa de a situação estar assim. Estou cuidando de mim. “Não sou boba e nem fingida”. O Egoísmo concordava plenamente com esse argumento e no fundo de si sentia um prazer secreto em ver que poderia desfrutar sozinho, sem dividir, as coisas boas ao seu redor.

A Mentira há muito andava passeando de um lado para outro. Às vezes tinha sucesso, outras, era desmascarada pela Transparência, que não estava gostando nada daquilo. Mesmo a mentira não conseguindo inteiro sucesso, sempre encontrava um canto para se esconder.

A Loucura andava desvairada atacando: a uns insuflando discursos corrosivos e inflamados, esbravejando e atirando pragas pra todos os lados. A um outro fazendo negar todo sofrimento causado pela doença e pelas mortes. Mas bem próxima estava a Tristeza. Na pessoa de parentes e amigos manifestava desespero perante os hospitais, pelas mortes e por aqueles que haveriam de morrer por falta de recursos.

A Inocência, inconformada, acabou voltando para o seu mundo porque não havia mais lugar para ela, porém, com a promessa de um dia voltar.

A Paixão queria mais que esse mundo ardesse porque esse é o seu viver. Porém, em vista da situação dos humanos, decidiu fazer uma parceria com a Generosidade o Amor. Juntas emprestaram suas forças aos profissionais da saúde para cuidar e curar os enfermos até o heroísmo. Apesar da falta de condições e da novidade da doença, conseguiram salvar a muitos.

Finalmente, os Sentimentos se reuniram para fazer um pacto pela vida dos humanos. Depois de muita discussão, sem chegar a um acordo, a Sensatez decretou: Cada um de nós, se não puder fazer o bem, também o mal não há de fazer! Nisso todos concordaram, a paz e a saúde se estabeleceram.

(Conto inspirado em História dos Sentimentos – Lya Luft – Pensar é Transgredir)